E justamente hoje quando me levantei disposto a mudar o mundo, decidido a alimentar a África e extinguir todo o trabalho escravo humano na baixa Ásia; surge você linda e perturbadora para mudar toda a bússola da minha vida correta. Então, se este receio de ser engolido por tua boca rosada não me tomasse de medo, eu te encararia e perguntaria: Não daria para você adiar por mais uma semana o constrangimento de me fazer atravessar o semáforo ainda fechado, recebendo buzinadas de todos os carros que fiz parar, só para estar do outro lado da rua onde você caminhava calma e solta da vida? Porque só agora, quando descobri que a humanidade precisava tanto de mim, você aparece com essa cara linda sem nenhuma maquiagem vasculhando as vitrines do bairro com esses olhos castanhos? Porque só agora depois de anos e da fortuna que gastei com análise você submerge do chão para tirar a tranqüilidade dos meus sonhos? O que se passa nessa sua cabeça loura e linda pra te fazer achar ser autorizada a perturbar tanto com seu sorriso? O que te faz botar esse vestido azul tão despretensiosamente cheio de intenções e sair de casa durante esta tarde tão quente? Desceu do seu esconderijo para vir comprar cigarros ou o fermento para o pão que sobre a mesa ainda espera por suas mãos quentes? Então ali ainda de pé na calçada lutando contra alguma força que me pedia de joelhos por ti, eu parado e consumido por este duelo mudo, desleal e corrupto, de cartas marcadas e pontos vendidos, chego a perguntar aos céus – sem mesmo precisar olhar para ele – se tua beleza é capaz de alcançar o divino artístico de ser tão grande ao extremo de sensibilizar Deus, fazendo-o dividir contigo os segredos da engrenagem do destino para ciente de tudo, assim como Ele, você saber por qual rua eu passaria agora. Sim, pois sabedora das exatas horas e do lugar, você, meticulosa e calculadamente de sandálias rasteiras, jogaria os seus cabelos em minha direção, me inundando e me deixando cego para o resto da cidade que ainda ardia numa tarde quente de terça-feira. E eu que ia em direção à banca de jornais como diariamente me acostumei, me perdi na simplicidade do caminho.
Fernando Igrejas